“O malabarista encontra espaço para três objetos, onde originalmente só cabem dois”
– Cildo Meireles
“Meus trabalhos não são feitos apenas para olhar e admirar. São táteis, sonoros, físicos”
– Cildo Meireles
“Para mim o objeto de arte deve ser, sobretudo e independente de qualquer outra coisa, instantaneamente sedutivo”
– Cildo Meireles
Por Paula Medeiros, de Londres para revista Brasileiros.
by Daniella Duarte
“Estou me sentindo o Eric Clapton aos 20 anos”, segredou Cildo Meireles, com intimidade para a câmera, após ser abordado na rua por uma fã inglesa que o cumprimentava pela exposição na Tate Modern e solicitava uma foto com o artista plástico brasileiro.
Com a mesma intimidade, revelou episódios inusitados que marcaram sua infância e adolescência, como a vez em que encontrou um trabalho, feito de gravetos, construído por um mendigo durante a noite. Ou sua singular identificação com o astronauta Michael Collins – um dos três tripulantes da espaçonave Apollo 11, juntamente com Neil Armstrong e Edwin Aldrin –, que assistiu aos colegas caminharem pela Lua, há alguns metros de distância, mas nunca chegou a pisar no solo lunar. “Quando um repórter perguntou a Collins como ele se sentiu por fazer parte dessa experiência incrível, ele respondeu ‘Eu me sinto como aquele cara que cruzou o Atlântico num avião antes do Lindemberg, mas que agora não lembro o nome’”, explica Meireles ao finalizar a estória.
Com mais de 65 exposições individuais, em 45 anos de carreira, um dos mais respeitados artistas plásticos contemporâneo, especialista em instalações, foi vencedor de dois prêmios internacionais, Velázquez e Ordway, em 2008, e é o único brasileiro vivo a ter uma exposição individual, na Tate Modern – um dos templos das artes pláticas do mundo –, dedicada inteiramente a sua obra.
“Não é uma retrospectiva no sentido técnico da palavra. É mais uma antologia cobrindo um período que vai de 1967 até 2004. Eu sempre tentei fugir um pouco desse chauvinismo, desse nacionalismo que eu acho que não tem muito sentido, sobretudo porque a arte é um território que não tem nação. Acredito que a arte tem que ser um território de liberdade mesmo, para todas as pessoas que estão envolvidas, desde criadores ou produtores, até o público que é a parte mais importante de todo o processo, as pessoas para quem os trabalhos são feitos. Desde muito novo, adolescente eu sempre fui contra essa idéia de nação, de país. Agora, sobretudo em arte, acho que tem que ser um território onde essa discussão é terciária. É claro que eu nunca conseguiria deixar de ser brasileiro. Não é uma questão de querer ou não, de intenção ou não, de atitude ou não; eu sou brasileiro. No final, eu sempre vou escolher uma boa farofa, porque é uma coisa genética. Mas não é algo para ficar enfatizando quando estamos falando de escolhas e opções artísticas.”
Meireles é descrito pela imprensa britânica como intrigante, politizado, sedutor, filosófico. Assume que não gosta de dar entrevistas, mas apesar da aversão inata a lentes e microfones é sempre receptivo com jornalistas seja da grande imprensa, seja de jornaizinhos de bairro. No documentário, é possível conhecer aspectos ainda mais íntimos de sua personalidade, o que amplia e exterioriza o entendimento de suas obras. “Eu sou um artista direto, sintético e objetivo. Alguns críticos até não gostam muito, pois eu não complico em nada. O que quero expressar vai estar na minha obra claramente, sem grandes invenções. Por isso eu faço e defendo a arte conceitual. Eu acho que a arte conceitual democratizou a aparente sofisticação intelectual, pois a partir de qualquer material você pode desenvolver uma obra. Um amigo que passou um tempo preso me contou que, às vezes, quando ele estava na cela, lembrava de mim. Pegava uma caixinha de fósforo e um papel de bala e ficava pensando o que um artista conceitual como eu faria com aquele material”, relembra em uma das cenas do documentário.
Documentário
“Ele não gosta de estar à frente das câmeras, em evidência. Prefere que seu trabalho fale por si, ao invés de ele ficar falando”, anunciou o diretor Gustavo Moura, minutos antes de iniciar a primeira exibição do documentário Cildo, que estreou no último dia 9 de janeiro, na sala de exibição da Tate, em Londres, e ainda não tem data prevista para ser lançado no Brasil. Produzido pela Matizar Filmes, com consultoria de Vanda Klabin, Cildo faz parte da série Retratos Contemporâneos da Arte, que tem dois outros filmes, um sobre o artista Fernando Lemos, realizado em 2004, e outro, em produção, sobre Carlos Vergara, companheiro de geração de Meireles, que completou 60 anos no ano passado.
Os atrasos e problemas rotineiros de verbas para o documentário, que começou a ser produzido em 2005, acabou por auxiliar na qualidade da descrição da personalidade e entendimento da obra de Meireles.
“É um documentário que traduz a maneira como eu me vejo, não sei se sou eu, mas é a maneira como eu gostaria de me ver. A velocidade, eu gosto do ritmo. Eu gosto da maneira como o Gustavo [diretor] mostra os trabalhos. Quase como uma imersão, uma simulação, o que é raro em documentários em função do tempo de produção, mas ele conseguiu atingir este patamar com uma velocidade que eu gostei muito, quase que ideal, demonstrando muito respeito”, elogia satisfeito Meireles.
“Rodar desde 2005 deu outra característica ao filme. Foi uma sorte nossa! Se fosse apenas sobre a mostra na Tate, poderia parecer oportunismo. Pude gravar horas de entrevista com o Cildo, ir a outras exposições dele, como no Museu da Vale, explorar seu pavilhão em Inhotim e conseguir filmar cenas em Londres”, explica Moura.
O áudio é um dos pontos fortes do documentário, que resgata obras sonoras de Meireles pouco conhecida como a “Liverbeatlespool”, de 2004, produzida especialmente para a Bienal de Liverpool. Ou a “Sal sem Carne”, de 1975, que trata-se de um dos trabalhos mais políticos do artista e, merecidamente, ganha destaque na produção, revelando fatos históricos importantíssimo sobre um dos primeiros massacres indígenas a ser denunciado e averiguado como criminoso no Brasil.
De uma maneira geral, o som é algo intrínseco às obras de Meireles. “Até em instalações minhas o som está presente, dando mais dramaticidade e mais impacto à obra, como o barulho do vidro quebrando em ‘Através’ e a sobreposição das diversas emissoras de rádio em ‘Babel’”, analisa.
A propósito, o rádio é uma de suas maiores influências, ressaltando no documentário a transmissão radiofônica de “A Guerra dos Mundos”, feita em 1938 por Orson Welles. “Nessa obras de arte, Welles alcança o limite entre a ficção e a realidade – que é a plenitude de qualquer objeto de arte”, filosofa Meireles.
Antologia
Mil visitas diárias – o dobro das previsões dos curadores do museu –, sucesso absoluto de público e crítica. Assim encerrou a antologia sobre a obra de Cildo Meireles, que esteve três meses dividindo o quarto andar da Tate Modern com Rothko, ocupando uma das duas salas especiais para exposições temporárias.
“O pessoal do museu é muito profissional e trabalhou desde 2003 para que esta exposição acontecesse. Quando recebi a visita deles em meu ateliê [em Botafogo, Rio de Janeiro], parecia que eles conheciam mais minha obra do que eu mesmo”, recorda o artista.
O espanhol Vicente Todoli, diretor do museu, assina a curadoria da mostra, junto com o crítico britânico Guy Brett, co-curador e um dos grandes especialistas em arte brasileira no mundo, e Amy Dickson, curadora-assistente. De Londres, a mostra segue viagem para Barcelona, Houston, Los Angeles e Toronto. “O Brasil ficou fora, pois é uma exposição muito cara”, lamenta.
– Eureka (1970-75)
Exclamação feita pelo grego Arquimedes quando percebeu a possibilidade de medir o volume de um objeto utilizando o volume de água em sua banheira.
Na “Eureka” de Meireles, este instiga o visitante a experimentar 201 bolas de tamanhos idênticos e pesos diversos, levantando o questionamento sobre o domínio da percepção visual. No centro, encontra-se uma balança com uma cruz e dois blocos de madeira, dois objetos opostos mas que revelam ter o mesmo peso.
“Nos anos 70, eu trabalhei com a série Blindhotland, na qual o domínio do visual concede espaço para uma percepção ‘cega’ da realidade através de sensores auditivos, olfativos e de paladar, com a consciência da densidade, calor, e assim vai.”
– Através (1983-89)
Belo, transparente, vasto. O labirinto de “Através” compele o visitante a adentrar seu chão de cacos de vidros e, simultaneamente, o confronta com suas barreiras e dificuldades. Cada objeto é uma proibição ao movimento através do espaço, mas os olhos enxergam além das cortinas plásticas, aquários, cercas e barricadas. Com som dos vidros quebrando a cada passo, o visitante deve reconhece as barreiras e continuar o percurso se quiser chegar ao centro, ao coração da obra, a grande esfera de celofane que resplandece única e imponente. Como uma estrutura celular, com a bola brilhante fazendo o papel de núcleo, esta expansiva instalação também evoca o microscópico, alusão a osmose celular.
– Missões: como construir catedrais (1987)
“Eu queria construir algo que representasse uma equação matemática, muito simples e direta, conectando três elementos: poder material, poder espiritual e – um tipo de inevitável repetição histórica conseqüente a esta conjunção – a tragédia”.
O resultado é um teto com dois mil ossos pendurados, com o chão forrado por seis mil moedas, sendo que os dois estão ligados por uma coluna central composta por 800 hóstias. O trabalho denuncia criticamente a morte dos milhares de índios nas Missões Jesuítas, no sul do país.
– Glovetrotter (1991)
Uma malha de aço cobre esferas de vários tamanhos e cores, feitas de diferentes materiais e com diferentes proposições – desde bolas de futebol e bolas de ferro a pérolas. A combinação destes elementos, o metal utilizado em armaduras medievais num ambiente futurístico, semelhante visualmente ao solo lunar, faz alusão à ligação histórica entre viagens e conquistas da Humanidade, desde as grandes navegações a viagens especiais. “O material se relaciona através da imposição. A malha, apesar de sua capacidade de molde, cobre e retém as bolas por imposição”.
– Cruzeiro do Sul (1969-70)
Uma escultura minimalista, denominado por Meireles como ‘humiliminimalismo’. Trata-se de uma peça de 9 milímetros cúbicos, metade de carvalho, metade de pinho, em contraste a ampla sala vazia. “Os brancos reduziram os deuses indígenas a um único Deus, o do Trovão, quando na realidade as suas crenças faziam parte de um sistema muito mais complexo, poético e concreto. Emergindo através da meditação de suas árvores sagradas, o carvalho e o pinheiro”.
O questionamento sobre escala também está presente no título do trabalho. O Cruzeiro do Sul é a menor constelação de estrelas, mas também é um sistema de navegação e está presente na bandeira nacional.
– Desvio para o Vermelho: Impregnação, Entorno e Desvio (1967-84)
Simplicidade, objetividade de linguagem e interação, com rastros do neoconcretismo do final dos anos 50. Esta instalação coloca em questão a estrutura do espaço tridimensional monocromático. É um espaço com uma impregnação acentuada em vermelho que se torna extremamente saturada causando grande excitação sensorial, daí o título da primeira parte da obra, “Impregnação”. A continuação é “Entorno”, uma garrafinha derrubada no chão, de onde escorre uma quantidade abundante de tinta vermelha em direção a uma sala escura. Na sala escura, o “Desvio”, ouve-se um barulho de água corrente, ao fundo, sobressai uma pia torta, com a torneira aberta de onde escorre um líquido avermelhado.
– Fontes (1992-2008)
Com seis mil réguas, um mil relógios de parede e 500 mil números de plástico, “Fontes” denota a estética da acumulação, algo presente em diversas obras do artista. A definição e aplicação primárias das réguas e dos relógios são sabotados pela própria ilógica ordem numeral e espaços mensurados, subvertendo os conceitos de tempo e espaço destes objetos tão simples e usuais. A estrutura em que as réguas são dispostas segue uma forma espiral, baseada na Via Láctea. A trilha musical desta galáxia de números é o tic-tac constante e sobreposto em diferentes ritmos.
– Babel (2001)
800 rádios de diferentes tamanhos, cores e épocas encontram-se empilhados ordenadamente formam uma torre de luzes, freqüências, sensores, música, canais. O título refere-se à história bíblica da Torre de Babel que era alta o suficiente para chegar ao paraíso. Afrontado pela estrutura, Deus faz com que seus construtores falem cada um uma língua diferente, dificultando a comunicação entre eles. De acordo com o mito, a inabilidade de comunicação transformou-se na causa de todos os conflitos da Humanidade.
– Volátil (1980-94)
“Tire os sapatos e arregace as calças. Quatro pessoas de cada vez, por favor.” Estas são as instruções para entrar em “Volátil”. Nesta instalação o espectador pisa em uma espessa camada de talco industrial ao se aproximar progressivamente da chama de uma vela, no fundo da sala escura. Sente-se um forte cheiro de gás, ou melhor, do enxofre contido nos botijões para sinalizar vazamentos. Percepções táteis, visuais, e olfativas enlaçam esta que é uma das obras mais fortes e impactantes de toda a exposição – caso isso seja possível.
ENTREVISTA CILDO MEIRELES
O que representa para você, como artista, expor na Tate Modern?
Meireles: Se você joga futebol, é o equivalente a vencer a Copa do Mundo. Por Londres ter se transformado em um dos três centros mais importantes de artes plásticas do mundo, a minha escolha aconteceu num contexto de muita competição. Havia muita pressão sobre números, valores, etc, mas ao final fiquei bastante contente, pois tivemos uma resposta extraordinária do público, numa temporada em que também estava na casa exposições de peso como Rothko.
Como artista conceitual, o público é um dos componentes básicos de seu trabalho e você frisa bastante isso. Como você se sente ao passear pela sua exposição e ver filas de mais de uma hora de espera para entrar nas instalações como o “Desvio para o Vermelho” e “Volátil”?
Meireles: Por um lado é ótimo inclusive para a própria produção da exposição que significa uma boa arrecadação, pois trata-se de uma exposição paga. O público está sendo o dobro do esperado, de acordo com a previsão dos organizadores. Mas também isso é a Tate, eles têm uma visitação monstro!
A ironia é que trabalhos muito pequenos fisicamente, como o “Inserções”, lidam com um público muito grande. E as peças muito grandes sempre foram pensadas por mim para uma pessoa de cada vez, pelo tempo que quisesse. Algo bem oposto ao que está acontecendo. Nesse sentido, acho que há uma perda. Porém as pessoas estão tento contato com meu trabalho nessa exposição e, numa próxima ocasião, em outra situação elas possam ter essa experiência mais íntima com as peças. Eu tenho consciência de que é uma situação utópica, mas para mim, cada pessoa deveria ficar o tempo que quisesse e sozinha. Essa seria a verdadeira experiência!
Você comentou que expor na Tate é o sonho de qualquer artista plástico, comparável a vencer a Copa do Mundo para quem é jogador de futebol. Como artista, qual o próximo passo que você gostaria de alcançar?
Meireles: Na verdade eu nunca tracei objetivos dessa maneira. Os meus objetivos estão mais dentro do próprio universo do trabalho. Eu penso mais em projetos, alguns estão parados e eu gostaria de retomá-los. “Desvios para o Vermelho”, por exemplo, a primeira anotação minha sobre o trabalho é de 1967, mas a primeira vez que eu montei como instalação foi em 1984, ou seja, 17 anos depois da primeira anotação. Sendo que outros trabalhos foram aparecendo e foram sendo pensados nesse intervalo. Outro trabalho que eu fiz há quatro anos, na França, a idéia era uma tela única, ocupando toda a galeria, o nome é “Ocupações”. Este projeto é original de 68 e eu fui desenvolver somente em 2004.
Mas também tem o “Missões” que eu tive um mês. Desde o momento em que o curador do projeto Frederico Morais levou um grupo de artista para o Rio Grande do Sul, onde ficamos dez dias visitando as Missões Jesuítas. Ao retornar, nós tínhamos exatamente um mês para pensar num projeto e fazer a produção.
Então há estas discrepâncias. Tem trabalhos que ficam anos. Eu gosto quando faço uma anotação, começo de um projeto, deixo na gaveta, de vez em quando volto para dar uma olhada. É uma espécie de decantação. Isso também para dar uma oportunidade para alguém fazer aquele projeto antes, daí você não precisa fazer. Economiza.
Eu gosto, quando tenho possibilidade, de deixar dormindo os projetos. Num segundo momento você já esta pensando outras soluções, encara de outra maneira o conceito desenvolvido inicialmente.
Eu trabalho sempre com meu bloquinho de anotações. Quando aparece alguma coisa eu anoto, pode ser um pequeno desenho, uma palavra, enfim. Eu tive a possibilidade quando morei e Nova Iorque, de retomar o ritmo de trabalho de quando eu estava começando. Na época eu estava vivendo uma fase de desilusão ‘rambaudiana’, achava que o sistema era muito viciado e que não me interessava. Mas eu anotei quatro projetos e desenvolvi dois. Como eu não dependia daquilo para pagar aluguel, desenvolvia outra atividade, eu recuperei um ambiente de trabalho, um ritmo de trabalho semelhante ao que eu tinha na adolescência. Ou seja, eu não tinha que trabalhar contra o relógio. Tinha tempo para trabalhar cada detalhe no desenvolvimento dos projetos, curtir cada etapa sem aquela pressão.
Mas às vezes temos que trabalhar contra o relógio, o que também pode se tornar estimulante.
Você diria que este é seu método de produção? Como você desenvolve e amadurece seus trabalhos?
Meireles: Eu não tenho um método de trabalho, cada peça tem uma espécie de biografia. Eu sempre pretendi fazer cada projeto totalmente diferente do antecedente. Eu acho que isso é um aspecto que as artes plásticas permitem. É o contrário, por exemplo, da música que você tem liberdade, mas é escravo do tempo. As pessoas têm que ouvir a música para saber se gostou ou não. Um livro é a mesma coisa. Você tem que começar na primeira palavra e ir até o fim. Se você parar na metade ou faltando dez páginas, você não terá lido o livro. Assim como outras expressões artísticas, mas com as artes plásticas não. Ela possibilita que cada idéia, cada relâmpago que corta a mente do artista, aquela primeira visão que não tem definição, não tem cor, nem forma, nem volume – e que na verdade é o melhor momento de cada obra. Após, eu tento perceber todos os ângulos desse primeiro relâmpago para materializar numa obra que pode ser apreciada visualmente, sensorialmente, fisicamente; mas esta já é uma parte mais chata. Depois mostrar, conversar, vender; mas a coisa mais prazerosa sempre é o primeiro momento quando a idéia surge.
Quantos anos de carreira?
Meireles: Eu comecei a trabalhar seriamente, quer dizer, sistemática e metodicamente, a partir de 1963. Eu tinha 15 anos. A primeira exposição que eu participei foi em 65, durante o 2º Salão Nacional de Arte Moderna do Distrito Federal, em Brasília, onde eu morava com uns desenhos que eu chamo de “Meus Desenhos Africanos”.
Um ano e meio depois eu fiz minha primeira exposição individual, no Museu de Arte Moderna da Bahia, a convite do artista e escultor Mário Cravo Júnior, que na época era diretor do museu. Eu completei 19 anos durante esta exposição.
Mas nessa época, 1966 e 67, eu estava mais interessado em cinema de animação. Até cheguei a fazer um filme, de cinco ou seis minutos, desenhado na película que assisti uma única vez. Era o aniversário de um sobrinho de um amigo meu, cujo pai tinha alugado um projetor para passar filmes do Walt Disney. E a gente conseguiu convencê-los de que se tratava de algo muito interessante que nós queríamos assistir. Depois de um minuto de exibição, o filme era algo meio abstrato, as crianças não estavam muito satisfeitas e já começaram a reclamar que não queriam assistir ao filme, que queriam ver o Pato Donald. Mas nós conseguimos assistir até o final.
Quais cidades você já morou?
Meireles: Eu nasci no Rio, mas com menos de quatro anos minha família se mudou para Goiânia. Onde ficamos uns cinco anos, antes de irmos para Belém, que eu adoro, se não fosse tão longe era onde eu moraria.
De Belém, voltamos alguns meses para Goiânia antes de mudar para Brasília, em 1958, dois anos antes da inauguração. Em 67, com a exposição, fiquei um pouco na Bahia, e, na volta, passei uns seis meses no Rio. Embora eu seja carioca, acho que sou meio dissidente. Primeiro porque sai muito pequeno e, depois, me dava angústia ficar muito tempo no Rio.
Cheguei a entrar para a Escola Nacional de Belas Artes, em 68, mas freqüentei menos de dois meses, pois eu já estudava, desde 1963, com o professor e artista peruano, Félix Alejandro Barrenechea, que foi uma pessoa maravilhosa na minha vida, super importante. Então, as aulas não estavam acrescentando muito para mim.
Ademais, a Escola funcionava no Museu Nacional de Belas Artes, na Cinelândia, que sempre foi o centro cultural e político do Rio, onde aconteciam manifestações e passeatas. Então, em 1968, o cenário não era muito propício para continuar na faculdade.
Em junho, eu decidi ir para Parati, onde era muito mais barato que o Rio, e me estabeleci numa casa enorme e tal. O que foi perfeito, pois e estava trabalhando com os “Espaços Virtuais – os Cantos”, que são peças de três metros.
Em 1969, fui indicado para fazer parte de uma exposição que escolheria a representação brasileira para a Bienal de Paris, mas a feira foi fechada horas antes da inauguração pelo DOPS. O fato foi um escândalo internacional, gerou um boicote a Bienal de São Paulo por dez anos, enfim.
Voltei rapidamente ao Rio, mas como não conseguia ficar muito tempo. Fui participar de uma exposição em Nova Iorque, onde fiquei um ano e meio e foi quando convivi com o Helio Oiticica.
Ao retornar, fui para Petrópolis. Daí, fiquei com saudades de Brasília, então fui para Planaltina. Quando os filhos começaram a nascer, tive que me estabilizar num local e acabei no Rio. Mas eu fico seis anos sem ir à praia.
Alguns críticos comentam que há uma presença constante de esferas em seus trabalhos. Você conectaria este fato a sua história com o futebol?
Meireles: Talvez. Eu sou um artista direto e objetivo. Alguns críticos até não gostam muito, pois eu não complico em nada. O que quero expressar vai estar na minha obra claramente, sem grandes invenções e esferas são símbolos muito forte que ilustram perfeitamente a mensagem que eu quis atingir, de uma maneira ou de outra, em cada obra que achei necessário inserir bolas.
Aos 16 anos quase me tornei jogador profissional. Havia dois clubes que queriam me contratar, o Infanto Juvenil para o Flamengo e outro da categoria de base do Cruzeiro de Belo Horizonte. Mas eu já estava envolvido com desenhos, comecei a sair, beber, namorar… (risos). Do time que eu jogava em Brasília, cinco se profissionalizaram. Mas eu gostava mesmo era de jogar, nem de treina eu gostava, uma das razões que eu também não continuei no futebol. Quando começaram a implantar no Brasil o condicionamento físico para jogadores de futebol, isso tudo não era o que eu queria. Eu era peladero, se tinha uma bola quicando eu ia, mas se tinha que ficar fazendo exercício, forçar musculatura, eu não achava a menor graça.
Eu torço pelo melhor time do mundo, o Fluminense, e eu acho o futebol um esporte maravilhoso. Na minha geração era praticamente o único que existia, e um pouco de basquetebol, outros quase não havia prática. Hoje que existem muitas opções, o que é ótimo.
ENTREVISTA GUSTAVO MOURA
Qual a maior dificuldade na realização deste documentário?
Gustavo Moura: Filmar uma pessoa que não gosta de ser filmada. Embora o Cildo tenha sido sempre totalmente disponível e atencioso, nunca foi algo natural para ele ser “acompanhado” por uma equipe de filmagem.
Uma produção longa, como foi o caso de ‘Cildo’, muitas vezes, acaba desgastando a equipe e, como conseqüência, o produto. Como você avalia esse aspecto na produção deste documentário em particular?
Moura: Isso não aconteceu no caso desse filme porque o processo foi todo muito lento, suave e espaçado. Ficamos quase quatro anos realizando-o, mas sempre com outros projetos acontecendo paralelamente. Isso que você diz acontece mais quando se fica muito tempo exclusivamente trabalhando numa única coisa, o que não foi o nosso caso.
Para mim, foi sem dúvida muito bom ter tido esse tempo todo para ir me aproximando do universo do Cildo, para ir absorvendo o ritmo dele, o pensamento, o tempo e a forma de cada coisa.
Qual das estórias que Cildo conta no filme mais te tocou? Por quê?
Moura: A estória da casinha (que abre o filme). Porque, para mim, ela sintetiza uma série de características da personalidade do Cildo: a generosidade; o interesse pelo que está à margem; o interesse pelo silêncio; pelo anonimato; pelo gratuito; pelo insuspeitado; pela arte.
Você acha que o Cildo gostou de se ver na tela? Ele comentou algo contigo sobre o documentário após assisti-lo?
Moura: Como eu disse, o Cildo não gosta de ser filmado, de se mostrar. Conseqüentemente, não é algo agradável para ele se ver ou se ouvir na tela, seja como for. De todo modo, acho que ele está contente com o resultado e gosta, sobretudo, do ritmo do filme. Ele já me disse, diversas vezes, que se reconhece no filme, que se identifica com o tempo e com a “levada” do filme. Disse também que gosta muito da maneira como os trabalhos são mostrados. Na verdade, acho que o que ele menos gosta é mesmo de se ver na tela.
Alguma previsão para o lançamento do documentário no Brasil?
Moura: Por enquanto mandamos o filme para a seleção do festival “É Tudo Verdade”. Se for selecionado, será uma ótima maneira de estreá-lo no Brasil. Além disso, estamos planejando sessões públicas em SP, no Rio e em Brasília ainda no primeiro semestre de 2009.