Selton Mello como Jean Charles
Na última quinta-feira, 18, a equipe de gravações do filme sobre a vida do brasileiro Jean Charles de Menezes encerrou os trabalhos na capital britânica. Eles continuam filmando por mais algumas semanas, no Brasil, e pretendem lançar o filme na metade de 2009, provavelmente, próximo a data que marcará quatro anos da trágica morte, ocorrida na estação de metrô Stockwell, quando Jean foi morto com sete tiros pela Polícia britânica, em 22 de julho.
Foram dois meses de trabalho intenso e que agitou a comunidade brasileira em diversos sentidos. Atores novatos que foram grandes revelações durante as filmagens como o açougueiro Marcelo Madureiro Soares e o bancário Rogério Antônio Dionísio, que interpretaram os irmãos Barroso, Chuliquinho e Bislei. Os dois foram destacados por suas interpretações tanto pelo diretor do filme Henrique Goldman, como por um dos atores principais, Selton Mello, que interpreta o Jean Charles. Centenas de outros brasileiros que moram em Londres também participaram do filme como atores e figurantes.
Com tantos artistas pela cidade outros muitos tiveram a oportunidade de tirar foto e até conversar um pouquinho com estrelas como Selton Mello – que estava sempre disposto a tirar fotos com os fãs –, Vanessa Diácono, Luis Miranda e Sidney Magal – que mostrou-se um animador excelente nas gravações de seu “show” para uma das cenas do filme. O filme tem como Diretor de Fotografia Guillermo Escalon, Produção de Luke Schiller, e Produtores Executivos Stephen Frears e Rebecca O’Brien. A produção está orçada em torno de R$ 8 milhões.
A família, após muita insistência do diretor Henrique e ter passado um pouco os piores momentos do acontecido, suporta e auxilia o filme. Tanto que a prima de Jean, Patrícia Armani, participa como atriz do filme interpretando ela mesma. “Nós, eu, Vivian e Alessandro, ajudamos contando como o Jean era, do que ele gostava, o que ele fazia. O Henrique me convidou para fazer meu próprio personagem no ano passado. Eu achei uma loucura! Topei e desisti várias vezes, pois nunca tinha me passado pela cabeça ser um atriz. Na realidade eu não sou atriz, por favor! E eu fazer eu mesma, achava um pouco complicado, como até agora ainda estou achando, mas está sendo uma experiência muito legal”, revelou Patrícia ao Brazilian News.
O BN também conversou com Henrique Goldman e Selton Mello. Confira trechos da entrevista abaixo.
O diretor, Henrique Goldman
Brazilian News: Quando você ouviu a história do Jean Charles e, a partir daí, como surgiu a idéia do roteiro?
Henrique Goldman: A primeira vez que ouvi foi no dia em que mataram ele. Como todo mundo, eu sabia que tinham matado um terrorista no metrô e, como a maioria, senti-me aliviado, pois vidas de inocentes seriam poupadas. No dia seguinte, minha esposa me ligou e disse que o rapaz que mataram era brasileiro, que o terrorista era brasileiro. Eu disse “Imagina, você está louca, de jeito nenhum o terrorista vai ser um brasileiro”. Daí, em seguida, a gente veio a saber o quê realmente era.
Logo depois eu me interessei em fazer o filme. Eu estava pensando em fazer um documentário, mandei o projeto para a BBC, para o Channel 4, mas era logo depois e não houve interesse. Passaram-se alguns meses eu recebi um e-mail do Fernando Meirelles, que é um amigo, o diretor do “Cidade de Deus”, dizendo que iriam me procurar para saber se eu queria dirigir o filme.
Então, começou como este projeto para a BBC que acabou não acontecendo, ainda bem, pois era um projeto ruim, mas eu ia fazer para tentar mostrar algo sobre o fato. Mas a BBC tirou o filme da tomada e eu peguei o projeto para mim. Comecei a escrever o roteiro com o Marcelo Starobinas.
BN: Qual o principal motivo por você ter vestido a camisa do filme?
Goldman: Por alguma razão, por questões autobiográficas… Eu me identifiquei com essa história. Eu sou fascinado por “outsiders”. Todos os filmes que eu faço acabam, de um modo ou de outro, sendo a respeito de “outsiders”, estrangeiros, gente estranha em terras estranhas. E essa história é isso: brasileiro aqui em Londres. Aí a gente começou a investigar a vida dele, para saber quem era o Jean Charles. Investigar não no sentido policial, mas de descobrir quem era a pessoa. Eu descobrir muitas coisas em comum entre eu e ele.
BN: Como você descreveria o brasileiro Jean Charles
Goldman: Ele era um sonhador, um cara ambicioso, um batalhador, um trambiqueiro, muito engraçado, caótico, boa gente, invocado, mulherengo. É uma pessoa bem contraditória, complexa, interessante também.
BN: E como você se identificou com ele? Em que sentido?
Goldman: Na verdade, eu acho que quando a gente conta uma história, que tentamos primeiro encontrar uma coisa que nos conecta com a história, com a esperança que o quê nos conecta também conecte ao público com a história. O lado universal da história. E essa coisa do “outsider” é um tema universal. Tema de quem está no estrangeiro, em terra estranha, tem a ver com a Bíblia, são coisas que tem a ver com a Odisséia, com mitologia de muitas culturas. E, assim, espero que muitas pessoas, como eu, encontre alguma conexão com o personagem.
A minha conexão foi brasileiro em Londres, idealista, sonhador, essa coisa do mundo dos brasileiros em Londres. Isso me fascina muito! Pois aqui você encontra um tipo de um extrato purificado do Brasil, um mínimo denominador comum de todo o Brasil está aqui reunido. Como se fosse um sumo concentrado do Brasil. O mundo do filme é o mundo dos peões brasileiros aqui em Londres, dos motoboys. Eu nunca conheci nenhum goiano no Brasil. Todos os goianos que eu conheço estão em Londres. Existe esse um Brasil que eu só vim encontrar aqui. Talvez a gente se sinta mais brasileiro em Londres do que no Brasil, e isso também é uma coisa comum a todos os estrangeiros, em todas as culturas.
BN: O filme culpa e acusa a polícia pela morte de Jean Charles?
Goldman: Apesar de não ser um filme sobre a polícia, apesar de não ser um filme deliberadamente político o filme tem implicações políticas e é uma denúncia, espero que a mais forte possível, contra a polícia. Pois eu acho que para as pessoas se revoltarem e ficarem mais conscientes do absurdo que foi o comportamento da policia, a gente não precisa falar da polícia, a gente precisa falar quem foi o Jean Charles. Mostrar para as pessoas quem foi morto. O quê o mundo perdeu e a dor da família dele. Que um cara tão legal, tão amante da vida, tão engraçado foi morto de um jeito tão absurdo! E, depois, o comportamento absurdo da polícia de ter tentado sujar o nome dele, encobrir as mazelas. O filme é um libelo contra a polícia, no fundo. Só que o tema principal não é a polícia, mas emocionalmente a gente espera que a revolta das pessoas contra a polícia seja maior ainda.
BN: Como foi a aproximação de vocês com a família? Como eles estão colaborando com o filme?
Goldman: A família do Jean, especialmente os primos, sofreu muito. Claro que os pais também sofreram, mas o filme é sobre os primos que estavam morando aqui com ele. Eles foram tratados muito mal pela imprensa, pela polícia, eles foram usados. No princípio, com razão, eles tinham muitas suspeitas de quem iria fazer um filme, o que é totalmente compreensível, mas acredito que com o tempo a gente se aproximou. Tanto é verdade que a Patrícia [Armani], uma das primas faz papel de si mesma no filme. Eles todos, de uma maneira ou de outra, colaboram com o filme. Então foi interessante, o depoimento deles foi muito importante, muito válido.
BN: Vocês estão utilizando bastante a comunidade brasileira, de Londres, no filme. Figurantes e atores também, certo?
Goldman: Nós ficamos um ano e meio procurando na comunidade brasileira de Londres o que há de melhor, entre motoboys, peões, etc. Encontramos gente que nunca tinha atuado na vida, como o Marcelo que é açougueiro da Casa de Carnes Brasil, que faz o papel de Chuliquinho, o cara é… nossa! Ele é um monstro de ator! É maravilhoso, mas é mesmo, é comovente, engraçado, um talento incrível!
BN: E como está sendo a experiência de trabalhar com esses “novos talentos”?
Goldman: Ah! Um tesão! Não tem outro jeito de dizer. É que este filme tem toda uma dualidade. Por um lado é baseado em fatos reais, mas em nosso roteiro nós ficcionalizamos os fatos reais. Por um lado a gente tem atores que nunca trabalharam e pessoas que fazem papel de si mesma, e, por outro, a gente tem Selton Mello e Vanessa Giácomo. Por um lado é um filme brasileiro, por outro é um filme inglês. Ele é um filme cheio de dois lados.
BN: Como você definiria a comunidade brasileira em Londres?
Goldman: São, na maioria, jovens sonhadores, ambiciosos, gente que trabalha duro. Mas o engraçado é que sempre os estrangeiros são retratados aqui na Europa do mesmo jeito. A direita retrata com medo, como uma doença que está invadindo a Europa. A esquerda retrata como um bando de coitadinhos. Mas a minha experiência na comunidade brasileira não é nem uma coisa, nem outra. Ninguém é coitadinho, são jovens ambiciosos, trabalhadores, sonhadores, gente que vem para cá dar duro, que se sente livre, muitas vezes, da caretice das famílias, vem pra cá para fazer uma grana e ter uma vida melhor. Por tudo isso, o nosso filme é um filme que celebra a imigração. Tem que vir mais pra Londres. Manda o pessoal para Londres!
Jean Charles, Selton Mello
BN: E de alguma maneira chamou sua atenção o caso do Jean?
Selton: Chamou sim, sempre chama, mas não foi uma história que marcou profundamente. Foi mais uma das histórias violentas que a gente ouve todos os dias, sobretudo no Jornal Nacional. Como da vez que arrastaram uma criança no carro, no Rio de Janeiro, ou matam alguém em São Paulo, etc. Mataram um brasileiro no metrô em Londres.
BN: Como foi o contato com o roteiro?
Selton: Foi há três anos e meio, o Henrique [Goldman] me procurou dizendo que queria fazer um filme sobre esse caso. Eu lembrava do caso e achei interessante, mas queria ler o roteiro pra saber melhor o que ele queria mostrar. Desde o início, o que mais gostei dessa história, foi que quando ele morreu ninguém sabia quem era esse cara. Uma pessoa que morreu de uma maneira equivocada, a polícia cometeu um erro, matou um cara inocente, mas quem era Jean Charles? O que ele fazia? Como ele era com os amigos e família? E é isso que o filme se propõe a contar, a vida desse personagem. Mas não só a história do Jean, mas a vida dos brasileiros que vivem aqui em Londres. Daqueles “mais raladores” que vem para cá e trabalham como “cleaner” das 8 da manha às 10 da noite para juntar um dinheiro para mandar pro Brasil. Parece que vivem um conto de fadas em Londres, mas na verdade estão ralando para levantar um dinheiro. Muitas vezes nem saem para juntar, economizar e mandar o que conseguem para o Brasil. E esse era o universo no Jean aqui e é um universo interessante de ser contado.
BN: Rolou algum comentário comparando você e o Jean Charles?
Selton: Rola sempre. Mas o intimidador é até a página sete, a partir do momento que eu relaxei com isso tudo bem. Afinal, ninguém o conhece, o mundo não conhece o Jean Charles, como ele era, como ele andava, como ele falava. O que se viu foi uma foto, duas, mas foto. Nem vídeo dele tem. Então, na verdade, 99% do público vão conhecer o Jean Charles que eu fizer. E o outro 1 % é a família e parentes que vão falar que ele não era assim, que ele não falava desse jeito, enfim. Eu criei o meu Jean baseado em coisas que eu ouvi, mas não fiquei querendo imitá-lo, pois nem um vídeo de festa de aniversário existe dele. Eu fiz o meu Jean Charles.
BN: Para o Selton Mello, quem foi o brasileiro Jean Charles?
Selton: Um entre muitos que vem para cá [Londres] com o sonho de juntar dinheiro e, de repente, voltar com uma grana que não conseguiria juntar no Brasil. Existe esta idéia de Europa, Londres, terra da oportunidade. Muitos brasileiros têm esse discurso “Ah! Não volto pro Brasil” “Por quê?” “Porque aqui eu comprei esse laptop, tenho essa televisão de plasma que lá eu não teria”. O motivo é unicamente pelo poder da compra, que o dinheiro vale mais. As pessoas nem ganham tão bem assim, mas conseguem ter algumas coisas extras. Os brasileiros aqui têm o básico que no Brasil nem sempre é possível ter. E isso que acho que define bem, o Jean foi um sonhador. Um sonhador que veio para Londres tentar melhorar a vida, e ainda trouxe mais primos na esperança de não só ajudar ele, mas para fazer com que os outros também cresçam. Isso eu achei muito interessante. E, foi interrompido! Um sonho interrompido.
BN: Como que está sendo a sua experiência de trabalhar com esses figurantes que são personagens e que são reais também?
Selton: Eles não são figurantes, há a expressão não-atores. Eles são não-atores que estão em cena. Eu acho que eles oxigenam a interpretação do filme exatamente por não terem vícios de interpretação – eles são eles – então, tem muita força o que eles fazem. E alguns foram gratas surpresas de gênio! Tipo um cara que chama Marcelo [Madureiro Soares]. Na verdade, dois atores que fazem os irmãos Barroso, são dois caras que não são atores e são brilhantes! O quê eles fizeram no filme é digno de ator de verdade.
BN: Este é seu primeiro filme fora do Brasil. Qual a diferença?
Selton: É interessante ver que uma equipe funciona exatamente da mesma forma. Exatamente! O set é tocado da mesma forma. As hierarquias no set, tudo igual. É curioso de ver isso, mas em inglês, numa outra cultura. Temos uma equipe muito bacana reunida, muito talentosa e a fim de fazer, o que torna o trabalho muito prazeroso. Porém, em Inglês. Às vezes, coisas banais que estou acostumadíssimo a fazer em Português tenho que ficar pensando como vou fazer para trocar para o Inglês. Eu consigo me virar na língua, mas tem vezes que é difícil, que não consigo traduzir, mesmo coisas simples. É por isso que está sendo uma experiência boa, pela dificuldade também de se expressar.
BN: Esta é a sua primeira vez em Londres?
Selton: Não, é minha terceira vez em Londres e eu continuo sem conhecer a cidade. A primeira vez eu fiquei em Elephant & Castle na casa de um amigo que estava doente, então ele não podia sair muito comigo eu fiquei mais em casa. Não conheci. No ano passado eu vim aqui para gravar para a Globo. Quatro dias, gravei o dia inteiro. Na primeira brecha que eu tive, sai com o Henrique para conhecer parte da família. Desta vez, a gente está num local tipo Diadema. Então, estamos hospedados em Diadema, com todas as coisas legais e turísticas de Londres bem longe. Além do que, nós trabalhamos todos os dia das 7 ou 8 da manhã até às 7 da noite. Quando volto para o hotel não tenho saúde para pegar um táxi, meia hora para ir ao pub, nem sei onde. Quando falamos que estamos filmando em Londres, as pessoas pensam que estamos numa boa em Londres, ator internacional! Mas que nada, todo mundo ralando, trabalhando direto, então esta é a minha terceira vez aqui e continuo sem conhecer Londres. Talvez na época da “Premier” eu consiga ficar uma semana, num lugar mais próximo do centro e vou nos lugares mais legais.
BN: Ainda mais alguém conhecido como você, que todos te reconhecem e vêm falar contigo.
Selton: Verdade, é mais fácil para um ator identificar isso porque as pessoas reconhecem a gente. Mas é muito louco, outro dia estava andando, entrei num café para comer algo, daí já veio “maitre” que era português. E, em Portugal, eles assistem bastante às novelas brasileiras, são fãs. Ele veio tirar uma foto e começou a chegar mais gente. Ele chamou o cozinheiro, brasileiro; veio a faxineira, brasileira. Foi aparecendo brasileiro assim, do nada. Isso mostra como tem por aqui. Então, são muitos “Jeans Charles”. Muitos que vieram nessa de tentar juntar um dinheiro, trabalhar, a maioria fica aqui quatro anos e volta sem falar Inglês. Exatamente porque tem muito brasileiro e se você bobear fica aqui só falando Português. Não volta nem com esse bem, que para mim o maior bem que essas pessoas poderiam levar. Não o dinheiro, mas sim o conhecimento e outra língua.